O tempo que vai passando, leva-nos para outra idade.

Segunda-feira, 24 de Abril de 2006

No meu tempo de menina e moça já tinha passado a época dos lírios e vinha agora a dos cravos. Não havia varanda, jardim ou quintal sem um vaso ou um canteiro onde as cores dessas flores se misturavam desde os brancos aos vermelhos, alguns deles matizados. E era engraçado aquele cheiro combinado inicialmente com o do alecrim e, como persistiam durante muito tempo, vinha depois misturar-se com o dos manjericos que, não tarda, estão aí.

Era uma autêntica revolução da mãe natureza esta que se aproximava, em que as flores rebentavam numa sequência libertadora como se a existência fosse perfeita e não  existisse sem cor, sem aroma, sem vigor. Mas aquilo que mais me impressionava é que no meio desta profusão reinava uma ordem desconcertante, parecendo que cada planta se ajustava ao seu quinhão, sem estender as raízes para a terra onde outras flores rebentavam e outras e outras.

Às vezes convencia-me que tudo era mesmo assim, perfeito, como se não fosse preciso cuidar delas, obra de um acaso natural. Era o meu desconhecimento ou rebeldia juvenil que não atentava nas pequenas e sábias atenções que, durante todo o Inverno, alguém lhes tinha dado, de forma silenciosa, protegida.

Os meus preferidos eram os cravos vermelhos porque sentia neles a vida. Sentia-lhes o perfume à distância e, se alguns deles enfeitassem as jarras da minha casa, a minha alma tinha uma outra coragem.

Eu tinha 18 anos e era ainda menina e moça. Crescera numa família de regras e de franqueza, onde se sentiam restrições para a maioria das insignificâncias.

Abril foi sempre um mês com muito significado por algumas razões, mas sobretudo deslumbrava-me aquele poder, que ninguém contrariava, de ver os campos salpicados de flores silvestres zeladas apenas pelo tempo, provocando-me uma tentação desmedida de me deitar sobre elas e rolar como se, no mundo, apenas coubessem elas, eu e o céu.

E eu pensava que esta era a única sensação de liberdade.

Noutra idade pude perceber que a liberdade é aproveitada pelos mais estranhos percursos de vida. Mas continuo a acreditar que, independentemente dos caminhos,  ela só existe com os mesmos ingredientes que conheci nesses bons tempos de irreverência. 

 

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publicado por outraidade às 13:02

Quarta-feira, 19 de Abril de 2006

Não sei se está na moda ou se ,de facto, a sociedade actual está a dar conta de que as pessoas de mais idade precisam de outra atenção, de outras condições de vida. Os debates, as notícias, os jornais, vêm alertando para o envelhecimento deste nosso pequeno canto que é um País onde a evolução se processa num ritmo tão lento que mal damos conta dela.

Não basta dizer que se mudem as mentalidades. Estou convicta que esse processo se inicia no momento do nascimento, ou provavelmente, no momento da concepção.

E a resposta à pergunta “como tratamos os nossos velhos?”, está numa outra “como educamos as nossas crianças?”.

A formação específica para educadores de infância, não significa necessariamente que se encontrem preparados para a função,  mas lá vão dando uma no cravo, outra na ferradura. Contudo, a educação das crianças não pode ser deixada ao critério da creche, do jardim de infância ou da escola. Compete essencialmente à família transmitir a autenticidade da vida e de tudo o que dela faz parte, secundada pelas instituições  onde as crianças passam grande parte do tempo.  Nós deixamos que os filhos cresçam sem pais, sem avós, sem o sentido de comunidade que começa nesse pequeno núcleo que é a casa onde nos encontramos ao fim do dia. Os pais passaram a servidores de todas as necessidades das crianças, satisfazendo-as até ao limite; a escola prossegue esse trabalho,  passando-lhes a falsa imagem de que a vida é ver e ter. Aos avós faz-se uma visita de vez em quando, preferencialmente nas datas festivas do Natal e da Páscoa, alturas em que cobrem os netos de presentes que tentaram, antecipadamente, saber que os satisfaziam. Reduz-se esses momentos de curta convivência às delícias dos olhos esbugalhadamente felizes que a pequenada sente ao ver que os avós até conseguiram adivinhar o que eles queriam.

Educar as mentalidades passa por um processo de encarar frontalmente a realidade, sem deixar de dizer aos mais novos que existe o bem e o mal, que existe a vida e a morte. Os nossos pequenos não são desprovidos de inteligência, nem ficam traumatizados como tanto tememos quando, erradamente, lhes apresentamos o mundo cravejado de brilhantes sem deixarmos que eles descubram que os brilhantes não são diamantes, esquecendo, por exemplo, de lhes mostrar que também há brilho nas estrelas.   

Talvez então eles percebam como se vive uma causa comum, como se defendem os nossos valores, como é importante a família e como ajudar “um cego” a atravessar a rua não é um gesto bonito, é uma atitude normal.

Nesse dia, os seus olhos ficarão arregalados de alegria não pelos presentes dos avós mas porque vão reencontrar aqueles de quem já tinham imensas saudades.

publicado por outraidade às 15:43

Segunda-feira, 17 de Abril de 2006

 

Ontem, num dos jornais das 20H00 de um canal televisivo, foi passada uma reportagem sobre o abandono dos idosos, a relutância em alguns aceitarem os lares e os maus tratos de que algumas vezes são vítimas.

Confesso-vos que senti alguma compressão sobretudo porque nos deparamos cada vez mais com esta certeza, a de que nem sempre tratamos da melhor forma a nossa gente, cuja idade foi avançando.

O apoio, genericamente, está a ser desenvolvido por instituições ligadas à Igreja Católica, à Misericórdia ou a particulares e o Estado via “lavando as mãos” com uns subsídios.

Numa povoação do interior, alguns destes idosos que ainda se mantinham nas suas casas, contaram a lenda do filho que levou o pai à montanha para o abandonar e para ele ali acabar os seus dias, tendo tido o “cuidado” de lhe levar uma manta para lhe proporcionar algum aconchego. O pai, rasgou a manta ao meio e deu uma metade ao filho para que, quando lhe acontecesse o mesmo estivesse prevenido, não fosse o filho dele nem uma manta lhe dar. Repartiu o que lhe restava e, pelo menos, isso dava-lhe a certeza que o seu filho encontraria, naquela metade, algum conforto.

A maior parte de nós tem esta lenda nas suas memórias, mas poucas vezes a contamos fazendo parte das histórias da nossa infância e ela vai longe.

Uma senhora que se encontra há anos num lar escreve os seus pensamentos e num dos seus escritos referia-se às visitas dos familiares. Dizia ela que às quatro horas se iam todos embora e sentia-se um enorme vazio mas eles tinham que ir tratar da sua vida e deixavam ali os idosos, terminando com a seguinte frase:  “já não há lugar para nós lá em casa”.

 Ficamos sem palavras!

Não... todos os comentários que me saltam da alma vão levar freio, porque pouco ou nada resolverão.

Algumas soluções passarão muito mais pela mudança de atitudes, com gestos. E quando falo em gestos, falo em manifestação concreta de solidariedade, não material. Será que não temos isso ao nosso alcance?

Poderia levantar aqui inúmeras sugestões mas certamente não faltam ideias e, às vezes, não precisamos de ir muito longe para as por em prática. 

Mesmo que o nosso gesto possa parecer pequeno é qualquer coisa.

 

publicado por outraidade às 12:36

Terça-feira, 11 de Abril de 2006

Estamos quase na Páscoa e como vou ficar uns dias fora, não queria ir sem deixar um pequeno apontamento.

Independentemente da religião que cada um de nós professe, este é um tempo de re .. ssuscitar , re ...florescer, re .. cordar , re ...atar, re ...viver, re ...encontrar e tudo o mais que cada um de nós quiser meter nestes "res ".

ressuscitar = voltar a viver

reflorescer = rejuvenescer

recordar = lembrar de novo

reatar = prosseguir algo interrompido

reviver = adquirir novas forças

reencontrar = acto de encontrar novamente

São pequenos nadas. Porque não re ...começar?

publicado por outraidade às 01:53

Sexta-feira, 07 de Abril de 2006

 

Há mensagens que nunca esquecemos, apesar de nem todos os dias nos lembrarmos delas. O nosso quotidiano leva-nos a preocupações infinitas e ainda não acabámos uma tarefa, já estamos a pensar no que temos de fazer amanhã e depois e depois. Por isso, a introspecção é relegada para outros planos por não termos tempo. A vida passa como a velocidade da luz e ainda não anoiteceu já se fez dia.

Este meu pensamento levou-me a um mail que recebi onde estavam plasmadas frases de Gabriel Garcia Marquez e das quais retirei “Não passes o tempo com alguém que não está disposto a passá-lo contigo”. Que simplicidade de dizer as coisas e que autenticidade! Este escritor, nascido na Colômbia em 1928, foi prémio Nobel da literatura em 1982.

Que ousadia a minha se falasse da sua obra por demais conhecida, mas ao ler a sua biografa, deslumbrei-me não pela sua obra mas pela sua vida. Como é possível ser-se notável figura e escrever com a naturalidade deslumbrante de transformar o quotidiano em poesia de palavras simples, usadas como bagos de uvas que se colam uns aos outros sem espaços e desprendem em cachos suculentos.

Eu tinha de partilhar isto.

Quando foi detectado um cancro ao escritor, ele mandou uma mensagem ao mundo que é um autêntico hino à vida. Como homenagem e pela vida, deixo-vos algumas dessas frases:

Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate!

Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...

A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.

Aos velhos ensinar-lhe-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.

Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta”.

 

publicado por outraidade às 13:04

Terça-feira, 04 de Abril de 2006

Estive a pensar no objectivo deste blog. Tinha a certeza que conseguiria ir mais perto dos outros, dos que têm a minha idade ou uma idade mais avançada. Queria, desta forma, dizer-lhes que estou aqui, na disponibilidade que alguém não teria e que eu tinha para ouvir, para sentir, para partilhar. Assaltou-me esta incerteza e a minha forma de ser convive mal com qualquer dúvida, precisando dos ecos como alimento fundamental do meu dia a dia. Afinal esqueci-me de muitos que não podem estar aqui comigo por várias razões, tão banais, como a impossibilidade de terem um computador e a internet.

Eu queria ir mais perto, estar mais próxima, aliviar algumas solidões que existem silenciosamente e tornar este singelo espaço na sala principal de uma casa solidária, onde todos tinham o seu lugar, onde o chá sabia a fruta madura com biscoitos amassados com farinha da vida.

Não vou desistir porque se aqui não for tão longe, alguma forma encontrarei de ir mais perto.

 

publicado por outraidade às 11:41

Segunda-feira, 03 de Abril de 2006

Nas nossas meditações diárias, quantas vezes, pensamos no tempo que não tivemos para estudar, para concluir uma formação superior, para nos actualizarmos neste mundo das tecnologias e ficamos com a sensação de perdas, de termos ficado pelo caminho, de estarmos "por fora" e a nossa inibição retrai-nos nas conversas entre amigos ou discussões sobre assuntos da actualidade.

Esquecemo-nos, muitas vezes, da empresa que construímos, da equipe que liderámos, do horário que não tivemos. Afinal sempre desenvolvemos projectos aos quais demos tudo o que sabíamos, nos quais entregamos todo o esforço para uma vida melhor, especializando-nos na arte de amar. Este foi o caminho que escolhemos de pais, de avós e que fomos realizando com uma doação integral, sem que o tempo fosse impedimento e as dificuldades não se ultrapassassem. 

Agora, nesta idade, gerimos o tempo com outro saber, ainda que não consigamos desprender-nos totalmente dessa empresa que erguemos e que vai dando os seus frutos que farão parte constante das nossas preocupações.

Mas é altura para pensarmos um pouco mais nas nossas vontades, nos nossos prazeres, na realização de alguns sonhos que ficaram para trás. Já pensou nisso seriamente? 

 

publicado por outraidade às 10:55

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